quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Há dias assim...


"O Peso Bruto da Irritação"


"(...)
Passamos mais tempo e gastamos mais coração a sermos irritados do que em qualquer outro estado de espírito.
Apaixonamo-nos uma vez na vida, odiamos duas, sofremos três, mas somos irritados pelo menos vinte vezes por dia. Mais que o divórcio, mais que o despedimento, mais que ser traído por um amigo, a irritação é a principal causa de «stress» — e logo de mortalidade — da nossa existência.

É a torneira que pinga e o colega que funga, a criança que bate com o garfinho no rebordo do prato, a empregada que se esquece sempre de comprar maionese, a namorada que não enche o tabuleiro de gelo, o namorado que se esquece de tapar a pasta dentrífica, a nossa própria incompetência ao tentar programar o vídeo, o homem que mete um conto de gasolina e pede para verificar a pressão dos pneus, a mania de pôr o pacotinho vazio de açúcar debaixo da chávena de café, a esferográfica de Mário Crespo... (...)

É nos engarrafamentos, na bicha do supermercado ou do multibanco, no cinema atrás do cabeçudo que não nos deixa ver, no autocarro cheio de gente, que somos diariamente irritados. Há-de reparar-se que as pessoas que mais nos irritam são as que estão à nossa frente. São estas as pessoas que demoram, que levam horas a tirar o porta-moedas para pagar o táxi, que insistem em passar um cheque para comprar um quilo de cebolas e uma embalagem de Super-Pop, que se mexem na cadeira e desembrulham rebuçados durante a cena mais dramática do filme, que têm um tempo de reacção ao semáforo verde de aproximadamente 360 segundos, que pagam as contas da água, da luz e do telefone ao Multibanco, que se esquecem de tomar banho antes de usar um transporte público e depois insistem em esfregar-se contra quem tomou".

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

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