"Portugalite"
"Entre as afecções de boca dos portugueses que nem a pasta medicinal Couto pode curar, nenhuma há tão generalizada e galopante como a Portugalite. A Portugalite é uma inflamação nervosa que consiste em estar sempre a dizer mal de Portugal. É altamente contagiosa (transmite-se pela saliva) e até hoje não se descobriu cura.
A Portugalite é contraída por cada português logo que entra em contacto com Portugal. (...) Suponhamos então que Portugal é fundamentalmente uma meretriz, mas que cada português está apaixonado por ela. (...) existem cinco sinais (...) que demonstram que os portugueses, contra a vontade e contra a lógica, continuam apaixonados por ela, por muito afectadas que sejam as «bocas» que mandam.
Em primeiro lugar, estão sempre a falar dela. (...) Bebem uns copos, chamam-lhes uns nomes, e confortam-se todos com o facto de não sofrerem sozinhos. (...) E, quando dez milhões de lágrimas caem para dentro do vinho tinto que seguram nas mãos, todos abanam as cabeças, dizendo em uníssono «e hoje é o que se sabe...».
(...) Como qualquer apaixonado arrependido, o português acha Portugal má como as cobras, mas... lindíssima. O facto de ser tão bonita de cara (as paisagens, as aldeias, a claridade, o clima) só torna a paixão mais trágica. (...) O que não se pode dizer é «Portugal é um país feio». Nunca. Também neste aspecto se comprova a paixão.
Em terceiro lugar, os portugueses só deixam que outros portugueses digam mal de Portugal. (...) Qualquer estrangeiro que tenha a ousadia e o mau gosto de se fazer esquisito frente aos avanços despudorados de Portugal está condenado ao maior desagrado de todos.
(...)
Em quarto lugar, apesar do português passar o tempo a resmungar e a queixar-se quando está perto de Portugal, sabe-se o que lhe acontece quando está há muito tempo longe dela. Os grunhidos transformam-se em gemidos e as piscadelas de olho já não vencem senão lágrimas. E pensa invariavelmente: «Portugal é uma bruxa, mas antes mal tratada por ela do que bem por outra donzela...»
Em quinto e último lugar (e o «Quinto» não é fortuito), temos a derradeira prova da paixão do português por Portugal. Tem a ver com a ideia que ele tem do que Portugal podia ser. Para cada português, «isto podia ser o melhor país do mundo se...» (Segue-se uma condição invariavelmente impossível de se cumprir). A miragem deste país potencial é um paraíso que agrava substancialmente o inferno que os portugueses já supõem aturar. (...)
Estas expectativas insaciáveis revelam-se na saudável mania que têm os portugueses de comparar Portugal só com a pequena minoria de países que se encontram em muito melhor situação. Para um português, Portugal é o país mais pobre do mundo. Isto é, do mundo «que interessa». Se lhe falarmos nos demais 75% que estão piores que nós, diz logo: «Está bem, mas isso nem se fala...» (...)
(...) Entretanto, compreende-se que o difícil não é amar Portugal — o difícil é deixar de amá-lo, também porque é sempre difícil nós sermos felizes."
Miguel Esteves Cardoso, in "A Causa das Coisas"
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