quinta-feira, 4 de julho de 2013

Viva à lambida portuguesa


Como sempre, não podia ser mais actual. À medida que os anos vão passando, tudo o que é mau neste país tem tendência a refinar. E infelizmente, nos dias que correm, há cada vez mais pessoas a lamber tudo aquilo que a língua alcança, em vez de se preocuparem com a sua evolução enquanto "gente". É verdade que há-que ser esperto numa sociedade onde pisar tudo e todos não é uma preocupação. Mas há uma diferença entre ser esperto e ser um lambe-tudo. Está difícil de compreender que a categoria de uma pessoa anda de mãos dadas com o seu carácter. É nessa base que tudo assenta. É a partir daí que se trabalha e que se conquista tudo aquilo que se torna verdadeiramente sólido e útil, tanto para o indivíduo como para a sociedade na qual ele está inserido. O resto não passa de parasitismo. Não trás nada de novo. Aliás, o objectivo nem passa por trazer algo de novo ou de útil, nem mesmo por tentar atingir cada meta com carácter, determinação, garra e empenho, o objectivo passa sim por olhar para o próprio umbigo e tentar enfeitá-lo de várias maneiras possíveis, lambendo e pisando tudo o que tiver de ser. Tudo o que é fácil, facilmente se torna efémero. Enquanto a mentalidade assentar no cultivo da lambida em vez de assentar no cultivo do carácter e da conquista, estes textos vão continuar a encaixar como uma luva, numa sociedade em que a preocupação se foca no desenvolvimento de indivíduos superficiais e no desenvolvimento da capacidade de "engraxanço" para subir na vida.


"O Engraxanço e o Culambismo Português"


"Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele. 
Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia. 
Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alunos engraxavam os professores,os jornalistas engraxavam os ministros, as donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc... Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso. 
Nesse tempo, «engraxar» era uma actividade socialmente menosprezada. O menino que engraxasse a professora tinha de enfrentar depois o escárnio da turma. O colunista que tecesse um grande elogio ao Presidente do Conselho era ostracizado pelos colegas.Ninguém gostava de um engraxador. 

Hoje tudo isso mudou. O engraxanço evoluiu ao ponto de tornar-se irreconhecível. Foi-se subindo na escala de subserviência, dos sapatos até ao cu. O engraxador foi promovido a lambe-botas e o lambe-botas a lambe-cu. Não é preciso realçar a diferença, em termos de subordinação hierárquica e flexibilidade de movimentos, entre engraxar uns sapatos e lamber um cu. Para fazer face à crescente popularidade do desporto, importaram-se dos Estados Unidos, campeão do mundo na modalidade, as regras e os estatutos da American Federation of Ass-licking and Brown-nosing. Os praticantes portugueses puderam assim esquecer os tempos amadores do engraxanço e aperfeiçoarem-se no desenvolvimento profissional do Culambismo. 

(...) Tudo isto teria graça se os culambistas portugueses fossem tão mal tratados e sucedidos como os engraxadores de outrora. O pior é que a nossa sociedade não só aceita o culambismo como forma prática de subir na vida, como começa a exigi-lo como habilitação profissional. O culambismo compensa. Sobreviver sem um mínimo de conhecimentos de culambismo é hoje tão difícil como vencer na vida sem saber falar inglês". 

Miguel Esteves Cardoso, in "Último Volume"

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